Colaboradores

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Um mestre, os amigos e a pandemia

A Cia Boca de Cena tem em sua trajetória um intenso trabalho de pesquisa e documentação sobre o teatro de bonecos do estado da Paraíba e que gerou projetos maravilhosos como o "Benedito e João Redondo pelas Ruas da Cidade", referenciado pelo Iphan como um exemplo de ação de salvaguarda para um Bem Cultural Imaterial.
Mas assim como vários outros coletivos culturais, também vem sofrendo bastante com a atual situação do nosso País, seja no campo das políticas públicas de cultura e sua ineficiência - diria até inexistência atual - como no processo de pandemia, onde todos sabem que um dos setores mais atingidos é o cultural.
E, quando nos referimos ao sofrimento, vamos além das questões econômicas e nos detemos ao bem estar dos seres humanos, pois quem acompanha o nosso trabalho é sabedor de nossa preocupação com os mestres bonequeiros mais idosos, pessoas de extrema carência e que muitas vezes vivem isolados da cruel realidade política do Brasil.
Neste sentido, sempre que pensamos em realizar uma ação, priorizamos trabalhar primeiro o valor afetivo das relações, pensar o trabalho a partir da necessidade do outro ser humano: o que realmente vai valer a pena?
A convivência contínua com os mestres da cultura popular, em especial os bonequeiros mais idosos, nos fez refletir e pensar o mundo de forma diferente, onde mais que viabilizar uma ação cultural, precisamos parar e ouvir as histórias dos mais velhos, exercitar a paciência, andar de pés descalços para não machucar ninguém e, acima de tudo, respeitar a diversidade cultural.
Quando a pandemia chegou, a Cia estava executando o projeto de "Salvaguarda do Babau da Paraíba" junto com o Iphan/PB, onde chegamos a realizar dois encontros entre os bonequeiros e algumas apresentações públicas de babau. Mas tivemos que, obrigatoriamente, parar tudo e cancelar outras atividades que estavam planejadas.
Agora vou relatar pra vocês um pouco do que estamos vivenciando neste momento "pândemico", pois, a cada avaliação que fazemos internamente questionamos se o que fazemos está sendo significativo e para quem serve esta significância.
Quase sempre quando nos lançamos a uma autocrítica vem um velhinho nos ensinar o valor da vida e de nossas ações, pois mesmo longe estamos tentando nos manter conectados aos nossos companheiros de arte.
Vamos ao relato:
Certo dia o Artur Leonardo, nosso diretor, recebe uma ligação de um diretor da escola da zona rural do Sítio Canto de Pedra, da cidade de Lagoa de Dentro-PB.
Era o professor Jair Bertoldo, o mesmo fala para o Artur que o mestre Manuel Campina deseja muito lhe falar e que é de extrema urgência sua presença na casa do mestre.
Artur muito preocupado, pergunta se o mestre está bem de saúde e se algo grave aconteceu.
Jair então explica que nada muito grave, mas que seu Manuel Campina vai colher os milhos do roçado e gostaria de compartilhar com Artur a fartura e aproveitar para lhe contar uns causos.
Artur sorriu e disse: Jair com esse Coronavírus à solta não quero arriscar, por cuidado ao seu Manuel! Mas, vou pensar aqui no que fazer e como fazer, pois não é fácil sair de casa nesse momento.
Jair então, respondeu: grave um áudio explicando isso Artur, como você sabe, seu Manuel não sabe mexer no celular e ele precisa ouvir você falando pra acreditar que me comuniquei com você!
Artur, então gravou um áudio como reposta ao mestre.
Enfim, depois de muita conversa entre nós (Artur, Amanda e Gabriel Viana) decidimos ir à casa de seu Manuel, tomamos os devidos cuidados usando máscara, álcool em gel e cada um com sua garrafinha d'água pegamos a estrada rumo ao Sítio Canto de Pedra.
Ao chegarmos lá encontramos uma paisagem belíssima, pois anda chovendo muito pela região e os açudes estão cheios e o mato bem verde.


Seu Manuel veio nos receber com um sorriso que não tinha tamanho, segundo ele sabia que Artur não ia lhe fazer uma desfeita e tinha certeza que ele iria atender ao seu chamado. E agora estava mais feliz porque teve o prazer de conhecer o filho de Artur, o jovem Gabriel Viana


Artur, sorridente agradeceu o carinho, mas logo disse ao mestre que por segurança não poderia abraça-lo e nem retirar a máscara.
Seu Manuel, meio desconfiado se fez de satisfeito e convidou a todos para entrar.
As conversas foram muitas e a todo tempo o mestre se reportava ao garoto Gabriel dando exemplos de vida, contando suas aventuras com as mulheres, bebidas e brincadeiras de babau.
Até que chegou a hora do roçado e foi aí que se achegou Dona Maria, a mulher do Mestre, uma senhora simples e muito firme em suas respostas.


No roçado eu, Amanda, fiquei encantada com a pequena horta e com a qualidade da terra. Dona Maria começou a me explicar os cuidados com a plantação de coentros e a dificuldade de se plantar algumas coisas, por causa dos pássaros que comem tudo antes das pessoas.
Seu Manuel teve o prazer de nos mostrar tudo e nos dar uma aula sobre o plantio da macaxeira.

Lá tinha de tudo um pouco: fava, macaxeira, jerimum, pimentão, coentro, milho, goiabas e um cachorro amarrado chamado Antonio. (risos)
Depois do turismo no roçado sentamos no alpendre da casa e começaram os causos, o mestre não parava de falar e sorrir e todos juntos esquecemos do tempo, até que a tarde foi acabando e chegou a hora da despedida, seu Manoel não nos deixou sair sem trazermos um punhado de fava, um jerimum, goiabas, milhos e muitos afagos de amor e cumplicidade.
No final de tudo isso, saímos ainda mais fortalecidos e cheios de esperança, além de uma vontade de fazer ainda mais pelas pessoas. Não há dinheiro, poder ou status no mundo que nos faça mais feliz do que o respeito e o carinho que sentimos e dedicamos aos nossos velhos amigos. 
O cuidado não pode ser só físico ou financeiro, as emoções são nutrientes para que estejamos saudáveis psicologicamente e se não cuidarmos da nossa essência interior podemos enlouquecer com os maus pensamentos. Quando você estiver com um  idoso que  lhe recontar uma história, reaja como se nunca tivesse ouvido, sorria e agradeça por ter alguém que está feliz por sua presença.
Tudo isto nos mostra que dinheiro não é vida, milhões de pessoas estão morrendo e muitas cheias de dinheiro, o que a pandemia quer nos dizer? O que vale a pena?
Para a Cia Boca de Cena trabalhar a salvaguarda de um Bem Imaterial é antes de mais nada salvar a vida humana. Só haverá brincadeiras de babau se os fazedores continuarem vivos!


Amanda Viana - Cia Boca de Cena