Colaboradores

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Um sopro de afeto

Assim como milhares de artistas desse Brasil, a Cia Boca de Cena também vem passando por dificuldades de manutenção básica como pagamento de luz, internet, água, contabilidade e tantas outras coisas necessárias para nos mantermos administrativamente ativos enquanto coletivo artístico-cultural.

Mas acredito que o maior de todos os desafios é assegurar o equilíbrio emocional e psicológico de toda a equipe, nos mantermos conectados e atentos a tudo, sem pânico e controlando a ansiedade que nos acompanha implacavelmente.

Então, cada pessoa do grupo buscou individualmente encontrar caminhos para trabalhar seu equilíbrio interior, ao mesmo tempo que vem compartilhando quando possível suas conquistas, como novos projetos, aprovações em editais, boas conversas, risos, etc.

Eu decidi que iria aproveitar o tempo para mergulhar nas leituras, fazer a manutenção dos nossos bonecos e também confeccionar novos personagens. Daí, fui a cada dia tentando criar uma rotina e, confesso que não foi e nem é fácil, pois há dias em que o desânimo é tão grande que as janelas demoram a serem abertas.

Porém, com um respirar profundo aqui e outro acolá as coisas vão acontecendo e em um desses dias peguei 10 cabeças de bonecos para restaurar quando, de repente, encontrei alguns bonecos antigos que inclusive tinham sido feitos pelo Gabriel Viana (ainda pequeno), em umas das oficinas ministradas para crianças na antiga sede da Cia Boca de Cena.

Nessa exploração, uma cabeça em especial me chamou atenção: uma porquinha feita de garrafinha pet com papiér machê que eu mesma tinha confeccionado há muito tempo atrás.

Já em outro momento, à noite, comecei a trabalhar na restauração das cabeças e, sozinha na oficina, sentia um vento bom e um sopro ao pé de ouvido que dizia: é para Sofia?

Eu - meio sem entender - dei continuidade à produção; lixei, pintei, maquiei a porquinha, pus roupa e... o nome de Sofia soprava a todo momento ao meu ouvido. 


Daí comecei pensar em como fazer com que a Cia Boca de Cena chegasse até as crianças de forma concreta e não virtual, mas sem o nosso contato físico.

Hoje, o que mais escuto é que as crianças começaram a apresentar dificuldades de concentração, por causa do excesso de atividades virtuais e, o que antes era uma atividade prazerosa para elas - ficar na internet, agora está virando uma obrigação.

Como artista a gente conhece muita gente e quando se trabalha com crianças então... É infinita a quantidade de Sofias, Lucas, Mateus que passam por nossa vida e até difícil lembrar de todos os momentos com essas crianças.

Mas qual a história e quem é essa Sofia à qual me refiro?

Trata-se de uma Sofia especial, muito presente em minha memória! Uma menina linda, de rostinho singelo e doce, que dança um frevo daqueles, joga uma capoeira da gota serena e tem um coelho de verdade a quem deu o nome de Banzé em nossa homenagem.

Um respiro e decido ligar para a mãe desta Sofia. Ao telefone com a  mãe da criança pergunto como vão as coisas e a menina. Atenciosa, a mãe me responde e divide comigo um pouco do que a pandemia causou em sua família e eu do que estava vivendo naquele momento.

As emoções foram incalculáveis! Eu não imaginava o que a família tinha passado com a Covid-19 e nem as estratégias que tinham usado para manter o isolamento social dentro de casa.

A conversa ao telefone durou horas e eu, muito emotiva, entendi naquele instante o porque do tal sopro ao meu ouvido - era o danado do afeto tentando me avisar que uma criança estava precisando sorrir e gritar alto de alegria.

Ao constatar o recado do sopro do "Senhor Afeto" relatei para a mãe que a Cia Boca de Cena iria chegar à sua casa. Combinamos como seria essa chegada e decidimos fazer uma entrega (tipo Correios) sem que a criança nos visse.

No dia marcado fizemos a entrega e, junto com a boneca, estava um cartão do Coelho Banzé pedindo para que Sofia recebesse aquela criaturinha e lhe desse um nome. Pouco depois soubemos que a porquinha recebeu o nome de Maria.

Hoje, Sofia e Maria vivem grudadas brincando, sorrindo e cuidando do outros amiguinhos que moram com elas.

Grata Senhor Afeto! Quando possível pode soprar mais uma vez ao pé do meu ouvido que estou ao seu dispor...

Com afeto.

Amanda Viana - Cia Boca de Cena